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As interfaces do racismo

132 anos depois do fim da escravidão, o racismo ainda se faz presente na vida das pessoas pretes brasileiras

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Por Ariane Roque 

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“No Brasil não existe racismo, isso é uma coisa que querem importar” com toda tranquilidade o vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB), afirmou em resposta a uma pergunta feita em coletiva sobre o caso do João Alberto, homem espancado até a morte por seguranças em uma unidade do Carrefur, em Porto Alegre.


Mesmo que exista pessoas como o vice-presidente Mourão, que não acredita na existência do racismo no Brasil, o racismo se faz presente no dia a dia das pessoas pretas brasileiras. Em um vídeo divulgado pela conta @pretitudes no Instagram, mostra uma mulher afirmando ser racista, “ Eu sou a maior racista do planeta terra, odeio a raça negra, odeio, vocês são bandidos, ladrões”, esse é só um dos inúmeros exemplos que existem.

 

Segundo o advogado, Ramon Wesllyn Ferraz Ribeiro dos Santos, 27 anos, morador de Campinas, “O racismo é a prática de um ato que visa atingir uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando, diferenciando todo um coletivo de pessoas, em sua integralidade apenas em razão de sua raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, ou seja, o racismo é uma ação que viola uma lei, um crime que possui tipificação em lei própria, Lei Nº 7.716/1989.

 

Existem várias formas da prática, que “Vão desde impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado ou proporcionar qualquer tipo de tratamento diferenciado em razão de sua raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, afirmou o advogado. Essa prática racista, pode sim atingir uma única pessoa, mas não por sua individualidade, e sim marcada pela sua característica que a torna pertencente a um grupo específico. 

Além do racismo, é possível citar o crime de injúria racial, “Que é quando alguém atribui qualidade negativa e ofensiva a um indivíduo, com xingamentos pejorativos a sua raça, cor, etnia, religião ou origem, ou quando se compara alguém a um animal, como por exemplo: macaco, babuíno, urubu, está se praticando o crime de injúria racial” segundo Ramon dos Santos.

 

Ambas as práticas são consideradas crimes no Brasil, portanto existe punição. “Sendo o racismo com consequências mais graves, e conduta mais complexa de se enquadrar como criminosa por possuir requisitos menos identificáveis objetivamente, ou seja, o racismo é algo mais encoberto através de atitudes segregacionistas, o que torna sua identificação às vezes muito subjetiva. Nem todos irão perceber a prática, principalmente aqueles que não pertencem ao coletivo discriminado, mas ambos os crimes visão reprimir qualquer tipo de discriminação em razão da raça, cor, etnia, religião ou origem.”, explica o advogado.

 

Ramon acredita que seja possível viver em um país com menos discriminação e racismo. A solução para que esses casos diminuam drasticamente é a educação, e dessa forma aumentar a conscientização das pessoas. Além disso, Ramon acredita que os jovens estão mais instruídos, hoje em dia, com a internet está mais acessível as referências, houve um aumento das críticas sociais e aumento dos movimentos raciais. “O fim da escravidão no brasil é recente apenas 132 anos, pouco mais de um século apenas, sendo que no início a prioridade era sobreviver, e não combater as desigualdades, o que torna o movimento de luta pela igualdade racial de certa forma novo. Ainda que se comparado com outros países, como nos EUA, que já tem mais de 240 anos de luta pela igualdade racial, e várias figuras representativas como Martin Luther King e Malcolm X.”

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Arquivo pessoal

Representatividade através dos coletivos

Na Instituição de ensino, PUC-Campinas foi criado o Coletivo Ruth de Souza, composto por 49 integrantes, desde simpatizantes a membros efetivos, que tem como objetivo ser um espaço seguro para os estudantes pretos da universidade, mas além disso, “Ser uma comunidade no qual possamos articular em conjunto, sendo para reivindicar nossos direitos dentro da universidade, implementar projetos, ou seja, ter uma voz ativa”, complementou o estudante de jornalismo e integrante do coletivo, Brener Pompêo Rodrigues, 23 anos, morador da cidade de Campinas.

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O Coletivo Ruth de Souza tem um significado enorme para os integrantes, principalmente por estar dentro de uma faculdade particular, além de ter muita responsabilidade com o movimento social e racial , “O coletivo representa segurança, comunidade, família para mim, pois como estamos dentro de uma instituição bem elitista e conservadora, o coletivo se torna um espaço de aconchego, mas também de luta e resistência", concluiu Brener. 

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Para Brener o coletivo representa responsabilidade

com a causa

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Arquivo pessoal

O coletivo é a primeira experiência organizada e articulada com outras pessoas pretas fora do convívio familiar, da estudante Alissa Galdino

Para a estudante de história e integrante do coletivo, Alissa Galdino de Souza, 21 anos, moradora da cidade de Jundiaí o coletivo representa um espaço de convívio, social, político, cultural e acadêmico. “É uma oportunidade de lutarmos pelos nossos em conjunto, já que tendemos a ser minoria e inviabilizada dentro das universidades”, afirmou a estudante Alissa. 

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O coletivo vai além da faculdade, ele se expande para o Instagram também (@coletivonegroruthdesouza), permitindo alcançar e atingir mais pessoas com a causa, pois o espaço é preenchido com informações relevantes sobre a causa preta, além disso o grupo contribui para o movimento como um todo. Devido ao cenário atual, as reuniões do coletivo estão sendo realizadas via Zoom aos domingos. 

Quem foi Ruth de Souza
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Divulgação

           12 de maio de 1921 - 

           28 de julho de 2019

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Print/ Brener Pompêo

Coletivo Ruth de Souza em reunião pelo Zoom

Alissa ainda comenta sobre a importância que o coletivo carrega dentro de uma universidade, “Nos encoraja enquanto grupo a denunciar casos de racismo e injustiças que antes eram silenciados.” Ambos os estudantes, contaram já ter sofrido racismo, mesmo que de uma forma mais velada, apenas com olhares invasivos, ou, falas silenciadas, mas não deixando de estar presente. “Muitas pessoas se dizem antirracistas e que querem ver pessoas pretas ocupando os espaços, mas quando isso ocorre, nos tratam como se não devêssemos estar ali, ou, como se nossos conhecimentos fossem menos importantes e dignos de serem validados” declarou Alissa.

Primeira atriz negra a ser protagonista em uma telenovela na tv brasileira, pela Rede Globo, A Cabana do pai Tomás, na qual dividiu o estrelato com Sérgio Cardoso.

Ruth de Souza é uma artista e representa o arquétipo da representatividade negra na televisão para a comunidade, além de ser um grande ícone social e cultural. 

Sem contar que Ruth, foi a primeira atriz brasileira a ser indicada para o prêmio internacional: o Leão de Ouro, no Festival de Veneza de 1954,devido seu desempenho em Sinhá Moça.

Arquivo pessoal

Atualmente, ainda que numa proporção menor, pessoas pretes estão ocupando mais os lugares e encontrando sua voz. Dessa forma elas se sentem parte do movimento antirracista, principalmente aquelas que de alguma forma produzem conteúdo para as redes sociais. A estudante de relações públicas Bárbara Tayna de Souza, 26 anos, moradora de Campinas, retrata que começou na brincadeira a produzir vídeos para o Tik Tok, logo após trançar seu cabelo. “O que eu senti no Tik Tok foi os haters, pessoas que jogam palavras de ódio por jogar, foi um impacto muito grande.”

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Mesmo que a conta tenha sido criada com o intuito de se divertir, Bárbara acaba passando uma mensagem devido ao seu lugar de fala e a sua vivência e na internet as pessoas não aceitam isso. O principal tema abordado nos vídeos foi a apropriação cultural, em que inúmeras pessoas brancas destilam seu ódio descredibilizando o fato de que as tranças afros são muito mais do que estética.

A tranças afros representam a ancestralidade de um povo que usava como um meio de fuga, onde cada desenho representa muitas vezes o mapa de um lugar, no meio das tranças era escondido arroz, como meio de ter alimento para quando fugissem. Representam portanto, cultura, além de simbolizar estado civil, classe social, família. Para Bárbara as tranças representam sua própria beleza, força - principalmente da trancista - sua cultura e tudo o que todo mundo já lutou para que ela esteja aqui hoje, “Quando eu quero estar mais perto dos meus ancestrais eu coloco as tranças”, afirmou a jovem. “E é isso o que os brancos não conseguem entender, esse peso todo que as tranças carregam, apropriação cultural é usufruir da cultura do outro em benefício próprio”, completou.

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As tranças para Bárbara representam a ancestralidade e o peso de carregar algo tão significativo.

O racismo velado no ambiente de trabalho

Já a empresária e estilista de moda festa, Livia Soares de Fátima, 34 anos, formada em marketing e em moda, nunca passou por uma situação muito descarada de racismo no ambiente de trabalho, mas de uma forma sutil, recebendo alguns questionamentos, como “Será que ela é realmente boa mesmo?”, perguntas que uma pessoa branca não receberia. O racismo é estrutural e enraizado na vida das pessoas, no Brasil pelo menos, a maioria das pessoas não afirmam que são racistas, então muitas vezes ninguém percebe que aquele determinado questionamento acontece somente pelo simples fato da pessoa ser preta.

 

Um levantamento feito pela Consultoria Etnus, em 2017 mostra que 92% dos 200 moradores de São Paulo entrevistados, acreditam que existe racismo na contratação de candidatos e 60% já sofreram preconceito no ambiente de trabalho.

 

Menos de 5% dos trabalhadores pretos têm cargos de gerência ou diretoria. O levantamento de dados da Vagas.com revela que a maioria dos pretos e pardos ocupam posições operacionais (47,6%) e técnicas (11,4%) – percentuais superiores aos relatados por brancos, indígenas e amarelos. Já em cargos de diretoria, supervisão/coordenação e de senioridade, de alta e média gestão: apenas 0,7% têm cargos de diretoria, enquanto entre brancos, indígenas e amarelos, essa proporção é de 2%.

Em geral há uma discriminação e uma pré-determinação de cargos para pessoas pretas que são impostos pela sociedade. Nas novelas, por exemplo, mostra esse reflexo da realidade, as mulheres pretas são empregadas de mulheres brancas e ricas ou  babá, já os homens pretos são porteiros, traficantes, vilão, mas quase nunca um profissional num cargo maior, mais profissionalizante. 

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Livia conta que desde criança recebeu dos pais uma ótima base, o que a fez querer lutar pelos seus sonhos e não aceitar nenhuma limitação e nem estar num lugar que não a pertence. “Temos uma história difícil, muitas pessoas tiveram que sofrer, para que a gente pudesse estar aqui agora e construir uma outra história”, afirmou a estilista. Livia teve a oportunidade de morar no exterior, primeiro no Canadá em que trabalhou na semana de moda OktoberFest, depois na BCBG, uma marca de luxo americana na parte visual de merchandising e na França trabalhou para uma empresa brasileira, onde foi para ajudar a desenvolver o mercado deles, tendo também a oportunidade de trabalhar com grandes marcas, como Chanel e Bauman.

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Arquivo pessoal

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Arquivo pessoal

Arquivo pessoal

Livia começou a produzir jaquetas e vestidos para as amigas e hoje tem seu próprio ateliê

Antes de seguir seu sonho, Livia teve que fazer outra faculdade, por não ter recebido apoio dos pais 

Para a estilista  vestir é como um abraço e tem um importante significado quando desenvolve uma identidade com a roupa

Na França, Livia conta que sentiu um pouco do racismo mais escancarado, “A cultura dos franceses foi um pouco desafiadora, eu fui logo após o atentado. Os franceses são mais agressivos com pessoas estrangeiras. E lá fora, existe um estereótipo com a mulher brasileira, por acharem que nós somos as mulatas do carnaval, e isso é faz parte do racismo. Só faltou me perguntarem se eu sei sambar”, comentou. Apesar dessas situações a experiência foi ótima e o amor pela profissão a impulsionou a conquistar coisas que foram além do que ela imaginava, ainda mais por ser uma mulher preta moradora de uma cidade do interior de Minas Gerais, Varginha.

 

Há um ano e seis meses Livia abriu um ateliê em Varginha, que recebe o seu nome, “Poderia ter o nome de todas as mulheres que passam por aqui, tem meu nome, porque é a partir de mim, como mulher, essa questão de me observar, vestir e respeitar meu corpo”. Para Livia vestir é quase um abraço, “Quando você entende a cadeia por trás de se vestir, você passa a ter um carinho diferente.”

Fazer com que as mulheres se sintam muito realizadas e sintam a sua verdade por usar aquela roupa é o objetivo da estilista de moda festa, uma vez que ela vê a realização das suas clientes. Por esse motivo sempre propõe um questionamento as mulheres, “O quanto de você tem nisso? Ou você quer, porque é mais uma tendência?”

 

Como forma de aconselhar as pessoas pretas, Livia deixou um recado: “A pessoa tem que sentir com o coração primeiro, estar aberta e em movimento, para pensar que realmente seja isso que ela quer. Com certeza vai ter desafios, mas quando estamos sendo verdadeiros com a gente, agindo com o coração, não há desafio que a gente deixa para trás a ponto de nos fazer desistir.”

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