
Piscopatologia: o que é ser normal?
Doenças mentais são responsáveis por 20,76% dos afastamentos do trabalho no país, segundo Ministério da Previdência Social
Por: Rafaela Guarnieri
Foto: Arquivo pessoal

Ativista Naara Rodrigues busca ajudar pessoas com transtornos mentais.
Aos 11 anos de idade, Naara Rodrigues percebeu que seu comportamento não era o mesmo que o de seus colegas, suas postagens nas redes sociais eram mais sombrias e tristes. Passava grande parte do seu tempo no Tumblr, lugar em que a depressão, o suicídio e pensamentos mórbidos eram completamente romantizados. Hoje ela afirma que a divulgação sem filtro de postagens como as que via quando criança, foram fatores determinantes para tudo o que viria a seguir. Aos 20 anos, já diagnosticada com transtorno de bipolaridade, depressão e ansiedade, é ativista digital sobre o tabu que é a saúde mental. “Não tinha ninguém para falar sobre o assunto, não via ninguém falando sobre no sentido de ajudar, quando eu era mais nova. Então eu resolvi falar sobre.”, afirma.
No seu Instagram e TikTok, faz vídeos de humor e explicativos sobre os mais diversos temas envolvendo os transtornos mentais. Mesmo com todos os movimentos sobre a desconstrução da imagem do corpo perfeito, percebeu que ainda não falavam sobre a saúde da mente. “Quando eu precisei de alguém para falar sobre, não tinha ninguém. Então resolvi ser a mudança que eu queria ver no mundo”. Ter alguém para dizer que está tudo bem, que ter esse transtorno não diminui quem você é, ou te faz uma pessoa fraca, nem incompetente, é um dos motivos pelo qual Naara tomou a decisão de ajudar as pessoas através das redes sociais.
O que ocorreu no começo desse ano, também contribui para essa atitude, quando foi demitida do emprego como fotógrafa, devido à um episódio no trabalho. “Eu senti que não estava bem, conversei com a minha psiquiatra, e peguei um atestado de quatro dias. Quando voltei ao trabalho, fui demitida, porque disseram que não poderiam trabalhar com alguém que é instável, que uma hora estava bem e outra não”, conta. Era um trabalho novo, que a fazia feliz, e confiante de que daria certo, no entanto, quando precisou se afastar, deixou de ser vista como uma trabalhadora capacitada de exercer as funções que tinha que exercer, por causa do seu diagnóstico.
Hoje em dia, Naara diz que se conseguir um trabalho, sente a obrigação de esconder sua condição, para que não a julguem. “Ninguém fala para uma pessoa que tem câncer que a culpa é dela, que foi falta de Deus. Quando é sobre um transtorno mental parece que você vira uma pessoa preguiçosa, incompetente.”
Naara afirma que é surreal que ainda exista tanta gente com preconceito, pessoas que escolhem ser ignorantes. E que, em um mundo em que ninguém sobrevive sem trabalho, sem o dinheiro, existirem pessoas que não conseguem um emprego devido ao preconceito com o seu transtorno, além de tudo, pode só piorar o quadro dessa pessoa. Ela conta que uma amiga, diagnosticada com depressão, não foi aceita no emprego por conta da sua doença, e essa rejeição a levou ao extremo. “Ela não saía da cama, não comia, ficou tão fraca, e não aguentou. Se a minha amiga tivesse sido contratada, as coisas teriam sido diferentes.”
As pessoas com alguma doença mental sofrem uma represália, os outros não acreditam que ela dará conta do trabalho, entregar as coisas no prazo. Naara afirma que ao abrir uma porta de trabalho, poderia ser a chance salvar a vida dessa pessoa.
A ativista acredita que, muitas vezes aqueles diagnosticados com alguma psicopatologia, quando estão no mercado de trabalho buscam uma forma de compensar o fato de ter determinada doença. Segundo ela, muitos acabam se esforçando para ser o melhor naquilo que puder ser, para que os outros não os vejam como o doente mental, o louco.
Hoje, pelas redes sociais, Naara encontrou uma maneira de expor sua vivência, e conseguir compartilhar com as pessoas que se identificam com suas histórias. Pessoas que buscam ajuda para falar com os pais, a perguntam como falar com os outros. Seu conteúdo, é para os pais, familiares e amigos, qualquer um que possa ajudar e entender melhor os transtornos mentais.
“Por muito tempo eu senti que a minha vida não tinha valor, e eu não quero que as pessoas tenham que chegar ao extremo, como eu cheguei, para serem valorizadas, para receberem amor e carinho, para serem ouvidas. Eu faço isso tanto pela Naara de 11 anos de idade, quanto pelas pessoas que eu sei que sofrem, mas não têm coragem de falar.”, explica.
Foto: Arquivo pessoal
Para a psicóloga Heloisa Aparecida de Souza definir o que é normal ou patológico, quando se trata de saúde mental é um grande desafio, porque nós somos uns diferentes dos outros, portanto, pode ser perigos criarmos um estereótipo do que é o ideal e acabarmos excluindo as diversas manifestações de subjetividades de personalidades.
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“O transtorno mental é algo que afeta o indivíduo dificultando sua organização do dia a dia, nos seus processos mentais, memória, aprendizagem, processos de consciência e também quando coloca em risco a si próprio e outras pessoas.”

Psicóloga Heloisa Aparecida, especializada na relação do trabalho e a saúde mental.
O que deve ser considerado numa vaga de emprego são as capacidades técnicas e comportamentais. Se o sujeito é pontual, e tem boa comunicação. E segundo a psicóloga, não é porque uma pessoa tem um transtorno que essas competências não serão desenvolvidas. “Infelizmente o preconceito tira a capacidade dessas pessoas. A possibilidade de mostrarem as suas individualidades, compromisso e seu jeito de ser.”, afirma.
Ainda que existam políticas públicas com seus avanços, como a lei de cotas, elas são muitas falhas, segundo a psicóloga, uma vez que fica a cargo da empresa definir e contratar. “Como trabalho na área da psicologia organizacional, já ouvi por exemplo, ‘busque deficientes leves’. E isso é uma incoerência, mostra que contratam porque são obrigados, e não porque querem.”, explica. Conheça outras histórias sobre como diferentes formas de capacitismo afetam a vida profissional e pessoal das pessoas.
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Seria necessário, de acordo com a Dra. Heloisa, mais do que lei que obriguem a contratar, uma conscientização, uma mudança na forma como percebemos a pessoa diferente, seja física ou intelectualmente. “Eu acredito que temos muito ainda que avançar, enquanto sociedade. Só a partir do momento que trouxermos para o debate é que vamos conseguir pensar em políticas públicas que atendam verdadeiramente essa necessidade.” afirma. Para ela, devemos pensar nas políticas públicas, não como algo que é fruto de benevolência de um governo, mas sim construídas a partir dos movimentos da sociedade. Não devemos esperar que venha apenas do governo, mas de cada um de nós.
​O cenário pandêmico atual, sem precedentes, de acordo com a psicóloga é extremamente delicado. A saúde mental de todos nós está sendo afetada, no entanto há uma negligência muito grande em relação a ela, por ser considerada um tabu. Ainda que, segundo OMS (Organização Mundial de Saúde), no Brasil 5,8% da população tem depressão, e 18,6 milhões de brasileiros tem transtornos de ansiedade. “As pessoas têm dificuldade de falar e aceitar, o que acaba agravando a situação. Extremamente subnotificado, até para a pessoa se reconhecer num sofrimento psíquico, leva tempo.”, afirma.
Foto: Arquivo pessoal

Maria Souza diz que a pintura foi importante para sua reabilitação.
Maria Souza da Silva, 50 anos, diagnosticada com depressão, desenvolveu o transtorno por conta do seu trabalho. No entanto, comenta que demorou muito para entender que estava doente, costumava pensar que não era algo que pudesse ser tratado. Muitas pessoas à sua volta também pensavam que sua condição era apenas “coisa de sua cabeça”, a aconselhavam a focar mais no trabalho, não entendo que fora por causa do seu emprego que Maria começara a demonstrar sintomas de depressão.
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“O RH me chamou duas vezes para falar sobre a minha mudança de comportamento. Eu não sorria mais, nem conversava com as pessoas. Eu então expus o problema a eles, e disse que não suportava mais o ambiente de trabalho.”, conta. Maria chegou a tentar o suicídio três vezes, depois ficou afastada da empresa por um ano, foi quando percebeu que precisava de ajuda profissional, porque sozinha não conseguiria.
Sua rotina de trabalho era muito esgotante. Era muito dedicada a empresa, se lembra de nunca ter faltado ou levado atestado. Deixava de ir a suas consultas no médico para poder cumprir as horas extras que pediam a ela. “Mesmo depois das tentativas, ninguém conversou comigo, nem a empresa, ou os outros funcionários. Você percebe que é só mais um número para eles.”
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Maria afirma que a pressão que vivia lá dentro é algo que não deseja nem para o seu pior inimigo. Além de se sentir sozinha, incapaz de fazer um trabalho considerado simples, e saindo frustrada todo dia.
Ao compartilhar sua história, muitas vezes, era desacreditada. As pessoas diziam que em qualquer trabalho teria pressão, a julgando por ter ficado depressiva. “Acham que é frescura, que você não quer trabalhar, mas eu não me sinto apta para voltar ao mercado de trabalho. Eu sinto medo de não suportar e passar por tudo o que passei, de novo.”
Quando finalmente saiu da empresa, passou por um longo caminho de reabilitação, faz tratamentos com profissionais e remédios até hoje.

Durante o processo, se encontrou na pintura, o que a ajudou bastante. E não pensa mais em trabalhar fora, fica em casa, cuidando da mãe, porque acha que não conseguiria mais ser subordinada de ninguém. Ainda acredita que teve sorte, porque teve muito auxilio profissional, já que conhece pessoas que sofrem até hoje por falta de apoio tanto dos profissionais da saúde, como do poder público.
“Têm muitas pessoas que sofrem pressão psicológica no trabalho, e ninguém dá ouvido a isso. Eu ainda faço tratamento, e tenho os meus traumas, e não sei se eu vou conseguir voltar a ser a pessoa que eu era antes.”
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Maria também conta que outro fator determinante na sua luta com a depressão foi sua conexão com o lado espiritual. Após ter ficado três meses trancada em seu quarto, achou força no estudo da bíblia. A sua religião sempre esteve presente, mas ficou ainda mais forte, quando precisou conversar apenas com Deus e refletir sobre sua salvação.
Foto: Arquivo pessoal
Joyce Cristina, mestranda em psicologia social do trabalho pela USP, busca estabelecer o nexo causal entre o desgaste mental e o trabalho, afirma que é algo bem diferente do desgaste físico, uma lesão, ou acidente, em que a comprovação de que a causa foi o trabalho é bastante simples. No entanto, o adoecimento mental é algo mais complexo, devido a inexistência de exames que comprovem a relação do adoecimento mental e o trabalho.
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No seu estudo, o foco da psicóloga é o processo de cuidado durante a recuperação do paciente adoecido pelo trabalho, sua trajetória entre serviços públicos e privados de saúde, e determinar a importância dos vínculos que se estabelecem com os profissionais da área da psicologia. “Há trabalhadores que adoecem, mas precisamos levar em consideração, seu gênero, classe social, raça, questões determinantes para as experiencias dessas pessoas no trabalho.”, explica.

Joyce Cristina pesquisadora sobre o adoecimento mental no trabalho
Ao estudar a saúde mental e sua relação com o trabalho, também é importante levar em consideração o desemprego, uma vez que, segundo a psicóloga, para um individuo, estar fora do mercado de trabalho é algo que gera muito sofrimento, um sentimento de insuficiência e incapacidade.
A especialista ainda comenta sobre o centro de saúde e referência do trabalhador de Campinas que não tem psicólogo para atender os trabalhadores. E indaga sobre como as questões sobre a saúde mental serão discutidas se essa falta de profissional no local é um fato. “Isso já diz muito sobre como as questões de saúde mental são vistas, completamente negligenciadas e não reconhecidas.”
Foto: Arquivo pessoal
Luiza Marsicano de Freitas, 19 anos, estudante de medicina, foi diagnosticada com depressão e ansiedade, no ensino médio. Naquela época, não fala sobre o assunto com ninguém, porque tinha muita vergonha. “Eu pedi para a minha mãe não falar para as pessoas, porque eu achava que ter qualquer coisa do tipo era uma fraqueza absurda.”, afirma. Hoje, porém, Luiza acredita que começou a melhorar quando entrou em consenso com o que tinha. Como futura profissional da área da saúde, sempre buscar trazer sua perspectiva como paciente nas discussões em classe quando o assunto é a saúde mental, uma vez que sabe que seu diagnóstico não a torna uma pessoa menos capaz para fazer qualquer tipo de trabalho.

Luiza Marsicano busca dar atenção aos problemas da saúde mental.
Por ter sido diagnosticada cedo, Luiza sente que tem parte da obrigação de ajudar as pessoas que conhecem que podem ter as mesmas doenças, porque como já passou por isso, sabe o quanto é preciso o apoio de alguém. “Eu já aprendi a lidar com os meus transtornos, eu sei quando eu preciso parar, ou quando eu consigo fazer mil coisas durante a semana. Mas encontrei muita gente que sofria com esse tipo coisa que não sabia como lidar.”, explica.
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Enquanto fazia vestibular, conta que se cobrava muito. A exaustão tanto física quanto emocional era tamanha que quando descobriu que passou para faculdade em São José do Rio Preto, o primeiro pensamento que lhe veio a cabeça foi “hoje vou faltar do cursinho”. Hoje, já na graduação, comenta que tem alguns programas na faculdade que oferecem consultas gratuita com psicólogos, e que, diferentemente do que pensava, muitos dos seus colegas buscam esse auxilio. “Eu vi gente que dizia que nunca precisaria de um psicólogo recorrendo a isso, porque a vida de qualquer universitário é muito pesada, e é preciso ter essa preocupação.”
Luiza afirma que teve uma vantagem muito grande, porque a sua família a apoiou muito, mesmo tendo demorado 2 anos para buscar ajuda, assim que se sentiu preparada para aceitar seu transtorno, recebeu muito carinho e compreensão. “Nunca fale que é frescura, as vezes tudo que a pessoa precisa é de alguém para dizer que vai dar tudo certo, e ter esse sistema apoio.”, diz. A estudante também aponta a importância de saber sobre os diversos serviços de apoio do poder público.
Por conta do tabu muito forte em relação à saúde mental, esses serviços não são divulgados. “Quando a gente faz campanha do Setembro Amarelo, falamos sobre serviços como o CAPS, o CVV, e as pessoas muitas vezes não sabem que eles existem.”, explica. Luiza conta que seu primeiro atendimento psiquiátrico foi em CAPS (Centro de atenção Psicossocial), e que antes de conhecer tinha um grande preconceito, pensando que era um lugar só para pessoas loucas. No entanto quando saiu de lá, entendeu que assim como ela não sabia como era, muitos também pensam como ela pensava.
“A pessoa que está te rotulando, ela faz porque ela não entende, e se ela não entende a opinião dela não deveria ser validada.”.
Em Campinas temos o centro de referencia em assistencia psicossocial, o Candido Ferreira, localizado na Rua Helena Fabrini, s/n (próximo ao 118)
Distrito de Sousas, Campinas/SP
CEP: 13105-304
Contato:
Créditos foto de capa e fundo: Kamila Barros (Kanostt)
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